Depois do post anterior, sobre o quadro de Ribera leiloado na Sotheby’s, em Londres, tive muitos pensamentos sobre luz. Sobre escuridão e sombra. Consultei Clemente Hungria, pesquisador de arte, que me deu uma aula sobre o assunto e provou porque ele é a pessoa que se deve sempre consultar nesses assuntos. Luz na pintura, no Renascimento, no Barroco, em Caravaggio e no Tenebrismo. Para quem quiser acompanhar essa viagem, transcrevo abaixo o que me disse Clemente.
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Detalhe de "Deposição da Cruz", Pontormo
O Renascimento (séculos 14 a 17) é classificado bobamente como a “geometria da luz”. Não havia sombra. Quando havia, era cinza ou apenas inserida pra dar volume e espacializar corpos e sólidos. No século 17, a teologia e os pensadores da Igreja pensavam a luz de outra forma. Com Caravaggio, a sombra passou a ser presente e real. A teologia mudou, era a Contra-Reforma, a Inquisição.
Caravaggio afirmou o realismo, antes o privilégio era do idealismo.
Ele era do final do século 16 e veio do ambiente do Maneirismo –de Michelangelo, Greco, Pontormo, Tintoretto, Vasari, Becafumi, cores exóticas, de tafetá, azul turquesa, esverdeado, amarelo alaranjado, rosa pêssego, cores do sublime.
Caravaggio morreu em 1610, moço, com menos de 40 anos, pode ser que o trabalho ainda evoluísse muito. Em pouco tempo, ele mudou consideravelmente, mas sempre teve as características marcantes que o destacaram desde o começo. No final da vida, a evolução foi drástica e importante.
A sombra com Caravaggio tem o mesmo peso da luz. Elas são personagens, antes eram complementos. A escuridão existe em contraposição à luz e o jogo das duas desenha as formas. Elas têm um peso conceitual.
A principal conquista de Caravaggio foi com relação ao espaço, por isso ele pintou aquela luz e aquela sombra. Para abolir o espaço, geométrico no Renascimento, ele “inventou” aquela luz, que não é nada mais do que a observação da luz (de velas) real. Antes não se pintava isso.
"David", Caravaggio
O Tenebrismo é um termo que se aplica especificamente a alguns pintores espanhóis influenciados por Caravaggio. Ribera, grande pintor espanhol também influenciado por Caravaggio, foi para a Itália, onde ficou muito famoso, e o termo foi usado lá, respingando de volta em Caravaggio, mas posteriormente a ele.
O termo Tenebrismo foi usado no século 17 e depois, mas em sentido espanhol, que tem um componente místico-religioso da sombra e da visão espanhola pós-caravaggesca de morte e mortificação, do sobrenatural.
O Barroco vem de longe e não nasceu num dia certo. A sua semente mais clara estaria no que se chama Maneirismo, uma visão de mundo nova. O Barroco estaria no desequilíbrio das idéias maneiristas. Uma corrente do Barroco era a “Clássica”: escola de Roma e Bologna, da qual faz parte Carracci, por exemplo. Ela se baseia no movimento da composição, corpos idealizados, baseados no ideal clássico da estatuária grega e principalmente romana que estavam sendo desenterradas e valorizadas.
"Vênus Embriagada por Sátiro", Carracci
"Prometeu", Ribera
Caravaggio é a outra corrente desse primeiro Barroco. Rigorosamente, não há outro pintor como ele. Caravaggio era o contraste dialético e ambivalente entre os opostos, mas baseado no realismo, na observação do real. Os pilares de Caravaggio são o realismo e o tratamento do espaço. Tentam definir Caravaggio até hoje. E ele é, como só poderia ser um grande barroco, indefinível. Um dos maiores estudiosos de Caravaggio, que o revelou e recuperou para nós, foi o italiano Roberto Longhi (1890-1970). Antes, ele era considerado cafona.
A influência de Caravaggio chegou à Espanha com as cortes cultas e colecionadores. Pacheco, que era professor de Velázquez em Sevilla, conhecia Caravaggio por meio de descrições e gravuras que circulavam.
Logo correu a fama do pintor da nova maneira, da novidade. Velázquez já fazia caravaggismo antes de ver os verdadeiros quadros, pessoalmente, na Itália, muito tempo depois. Ele já tinha entendido a idéia e a repetia (depois ele foi por outros caminhos). A fama de Caravaggio foi imensa, vertiginosa e rápida, até o Papa era fã, e o caravaggismo existiu na Europa interia, em países do norte, na Espanha, Itália, França etc…
"São Francisco em Meditação", Zurbarán
O Tenebrismo é uma corrente do Barroco espanhol influenciada por Caravaggio. O termo é usado para seus grandes expoentes, como o Ribera, que andava pela Itália, e acabou fazendo com que o estilo se espalhasse e o termo fosse usado também para alguns italianos. Porque Ribera faz parte da tradição da pintura espanhola, pelo ambiente e matriz, e da italiana, pela geografia, pois ele viveu lá e influenciou os pintores italianos que já faziam caravaggismo. Com ele, o Tenebrismo chegou na Itália pós-Caravaggio. Mas o estilo também foi praticado na América Espanhola por causa de Zurbarán. É mais fácil achar o Tenebrismo analisando cada obra dos pintores, do que pensar nele como um estilo. Como o Impressionismo, que existia muito antes do século 19, “inventado” pelo Ticiano.
Para simplificar, alguns críticos chamam toda pintura barroca e seus descendentes de claro-escuro. Mas, muito mais do que isso, o claro-escuro existe em toda a história da pintura. Ele está em toda pintura em que a luz e a sombra são importantes. Mas não há claro-escuro, por exemplo, em Kiefer.
O Tenebrismo tem claro-escuro, como outros estilos, mas é mais que claro-escuro, e nem todo claro-escuro é tenebrista. No Tenebrismo, o peso da sombra e do negro impera na pintura. A escuridão é uma presença pesada, não só da sombra. Em geral, numa comparação entre Ribera e Caravaggio, o primeiro pode ter uma palheta mais negra, mas o segundo é mais quente, embora possa haver exceções. A diferença é conceitual, no que cada um pensava.
"São Jerônimo", Michelangelo Merisi da Caravaggio (1606)
O que importa, nesse “São Jerônimo”, para Caravaggio, é o espaço, e para Ribera é a luz. Em que espaço está o “São Jeronimo” de Caravaggio? Nenhum. O espaço é abolido, os corpos flutuam.
O “São Jerônimo” de Ribera é definido por planos imediatamente compreensíveis. Em Caravaggio, o espaço é abstrato, em contraste com a figura, e o tratamento pictórico é realista, pela luz. Na composição de Caravaggio, há as pregas da pele do velho, as pregas dos panos branco e vermelho, esses dois rios que serpenteiam entre luz e sombra. Há só três cores: vermelho, branco e cor de pele-e-osso. O preto não é cor, é uma idéia, um não-espaço, é o silencio.
E há outras sutilezas. A caveira não brilha, mas faz “eco” com a careca do santo, de quem não se vêem os olhos. Ribera nunca chegou a tanto, mesmo em seu “Prometeu” (que foi leiloado na Sothebys), onde o negro ocupa 80% da tela, mas não é conceitual. Essa seria a diferença entre o Tenebrismo e Caravaggio.
"São Jerônimo", Jusepe de Ribera (1613)